Estudo sobre processo evolutivo de diversificação de organismos marinhos reforça teoria geológica de que há 10 milhões de anos existia uma língua de oceano que cortava o continente desde o Caribe até o Uruguai, cobrindo toda a bacia Amazônica (ilustração: Science)
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP
Depois de estudar por quatro anos o processo evolutivo de diversificação de um grupo de anêmonas de tubo do Atlântico Sul, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) obteve um resultado inesperado: o estudo biológico acabou contribuindo para reforçar a teoria geológica de que, há cerca de 10 milhões de anos, a bacia Amazônica era ocupada por um mar interno que ligava o Caribe ao Uruguai.
O estudo, publicado na revista PLoS One, teve o objetivo inicial de identificar, por meio de análises genéticas e moleculares, em que momento da evolução ocorreu a diferenciação entre duas espécies de anêmonas de tubo do gênero Isarachnanthus, do grupo Ceriantharia presentes no oceano Atlântico.
Os resultados mostraram, no entanto, que o cenário mais provável para a diferenciação das duas espécies – e de uma terceira existente no oceano Pacífico – seria coerente com a chamada teoria da “rota marinha da Amazônia no Mioceno médio”.
Segundo essa teoria, um passagem marinha ligava o Caribe à região atual da costa do Uruguai, entre 9 milhões e 11 milhões de anos atrás, cortando ao meio o continente. A maior parte do Brasil atual, nesse período conhecido como Mioceno médio, teria sido uma ilha separada do resto da América do Sul por uma língua de oceano.
O artigo foi elaborado por pesquisadores dos departamentos de Zoologia e de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP, da Fundação Carmabi de Curaçao (Antilhas Holandesas) e do Instituto de Biodiversidade e Dinâmicas de Ecossistemas da Universidade de Amsterdam (Holanda).
O estudo teve apoio da FAPESP por meio do projeto “Sistemática, ciclo de vida e padrões reprodutivos de medusas”, realizado no âmbito do BIOTA-FAPESP e coordenado por André Morandini, também autor do artigo e professor do IB-USP.
De acordo com o primeiro autor do artigo, Sérgio Stampar, que realiza pós-doutorado no Departamento de Zoologia do IB-USP sob supervisão de Morandini, há pelo menos 50 anos não surgiam estudos novos sobre as anêmonas de tubo Isarachnanthus no Brasil, por causa da dificuldade de se realizar coletas de espécimes desse grupo, que só é encontrado à noite, no substrato marinho.
“Nossa ideia, quando começamos este estudo, foi retomar as pesquisas sobre esse grupo esquecido de cnidários. Fizemos a coleta em várias regiões do oceano Atlântico e conseguimos grande quantidade do organismo. Além dos estudos morfológicos de praxe, começamos a fazer a análise genética dessas anêmonas de tubo, que ainda não havia sido realizada”, disse Stampar à Agência FAPESP.
Segundo Stampar, as análises filogenéticas indicavam que, há cerca de 16 milhões de anos, só existia uma espécie da anêmona de tubo, ancestral a todas as Isarachnanthus tratadas no trabalho, que ocorria no Atlântico Norte, provavelmente na latitude da saída do mar Mediterrâneo. Essa espécie possivelmente atravessou o oceano e chegou até o Caribe.
“Descobrimos que a espécie do Brasil, Isarachnanthus nocturnus, do ponto de vista genético, era mais próxima à espécie existente no Pacífico, Isarachnanthus bandanensis, do que da que existe no Atlântico norte, Isarachnanthus maderensis. Isso nos deixou surpresos, porque achávamos que as duas espécies do Atlântico teriam mais proximidade entre si”, disse Stampar.
A princípio, a espécie do Atlântico Sul, tendo se diferenciado em tempos mais recentes, poderia ter alcançado regiões mais meridionais pela costa da América do Sul, carreada pela corrente. Mas isso não seria possível, porque os estudos geológicos mostram que já naquela época as correntes eram geradas, como hoje, do sul para o norte. Portanto, elas devem ter passado por outra via.
“É praticamente impossível que essas anêmonas de tubo tenham vindo pelo Atlântico. No entanto, as análises moleculares e de DNA que fizemos permitiram estimar que os organismos chegaram ao Atlântico Sul há cerca de 8 milhões ou 9 milhões de anos. Essa data coincide com as especulações da geologia sobre a existência de um mar interno que cortava a América do Sul. É muito provável que essa tenha sido a rota das anêmonas”, explicou Stampar.
Outros organismos
A rota marinha teria ligado a região onde hoje é o Caribe, na costa da Venezuela, à região onde hoje é o Uruguai, estendendo-se por todo continente sul-americano, cobrindo as regiões onde hoje estão o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Acre. Quando esse mar interno se fechou, as anêmonas que haviam chegado ao Atlântico Sul teriam ficado isoladas e se diferenciado em outra espécie.
“O processo geológico explicaria o isolamento dessas anêmonas, que teria permitido a diferenciação da espécie nocturnus quando o mar interno se fechou e a população ficou segregada no Atlântico Sul”, disse Stampar.
“Mais tarde, a espécie bandanensis pode ter surgido por processo semelhante: as anêmonas de tubo da espécie nocturnus, provenientes do Atlântico Sul, depois de chegar ao Caribe, teriam passado pelo Pacífico, porque não havia barreira entre os oceanos. Depois do fechamento do istmo do Panamá, há 4 milhões de anos, elas ficaram segregadas e se diferenciaram na espécie do Pacífico”, disse.
Embora tenha reforçado a teoria da rota marinha da Amazônia, as conclusões ainda são especulativas, segundo Stampar, já que o estudo foi realizado com um só grupo de organismos.
“No entanto, o trabalho mostrou que vale a pena procurar outros organismos que sigam o mesmo padrão. Meu pós-doutorado está em grande parte relacionado a essas pesquisas – principalmente a partir do estudo de outros cnidários como águas-vivas, que são a especialidade do nosso grupo e, em tese, têm características diferentes de dispersão”, afirmou.
O artigo Evolutionary Diversification of Banded Tube-Dwelling Anemones (Cnidaria; Ceriantharia; Isarachnanthus) in the Atlantic Ocean, de Sergio Stampar e outros, pode ser lido naPLoS One emwww.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0041091