terça-feira, 9 de agosto de 2011


Jalapão: beleza e
destruição no cerrado




Viagem interior sob fogo cerrado

MARIA ALICE DA CRUZ/ JORNAL DA UNICAMP
A viagem ao Jalapão, no estado do Tocantins, atraiu não só o olhar de antropóloga mas também o de artista e fotógrafa de Silvia Helena Cardoso. A pesquisadora encontrou no quase ermo do cerrado motivação para conduzir a tese de doutorado, defendida em junho na Galeria de Arte da Unicamp, cujo objetivo foi desenvolver um trabalho poético no qual a subjetividade é pensada como conhecimento e como matéria poética. “No Jalapão, tive encontro com essa subjetividade porque o cerrado e essa paisagem desértica dão margem a uma viagem interior”, declara Silvia.
O trabalho deu origem ao livro de fotografias Estrada, Paisagem e Capim, que contém as imagens reveladoras do deslocamento a partir de uma percepção panorâmica para um recorte fragmentado, em detalhes. Segundo Silvia, as fotografias são acompanhadas de relatos que mostram a aproximação da artista-pesquisadora não só com a geografia do Jalapão, mas com o universo humano presente naquele lugar. A pesquisadora enfatiza que as pessoas se tornaram coautoras do trabalho a partir do momento que suas histórias direcionaram a vivência da artista naquela pequena parte do cerrado.
Além da impressão em papel das 72 imagens que compõem o livro, o trabalho resultou num álbum digital com 170 fotografias selecionadas entre as 5 mil imagens capturadas por Silvia. A maioria das imagens é colorida, à exceção de dois retratos, em que a cor foi subtraída para dar ênfase à fotografia em preto e branco. O material mostra cada viagem, cada descobrimento e o aprofundamento no bioma cerrado. A pesquisa foi concluída com a realização de uma exposição das fotos e da mídia.

A sobreposição de olhares deu origem a um compêndio sobre o Jalapão, por meio das imagens capturadas pela objetiva digital da artista, capazes de revelar tanto a beleza quanto a melancolia de um cenário agredido por queimadas. Parte da história do Jalapão compreendida entre 2006 e 2009 é contada pelo percurso da artista, que teve início com a viagem Ade encantamento e prosseguiu com a viagem do conhecimento. Hospedada na comunidade secular de Mumbuca, berço do artesanato de capim dourado, Silvia pôde ter contato com os quilombolas e fotografar as mulheres trabalhando com o capim dourado e a linha de seda de buriti, mas, ainda movida pelo encantamento, retomou o foco por constatar que a natureza poética da pesquisa era a paisagem.
Segundo Silvia, os deslocamentos deram vazão às experiências estéticas que foram pontuadas por conhecimentos objetivos e subjetivos, a partir do contato com aquele universo e da forma com que repercutiram internamente. Os objetivos, de acordo com a autora, oferecem um conjunto de informações encontradas em histórias orais narradas pelos moradores do Jalapão que fazem parte de um imaginário coletivo. Já os conhecimentos subjetivos dizem respeito aos sentimentos e às sensações possíveis por meio da permanência e do contato com o lugar.
A prática e a teoria caminharam juntas durante o projeto, segundo Silvia, pois as imagens foram apontando para algumas teorias e para pensar o instante como matéria da visualidade. Ela enfatiza que apesar de o Jalapão não ser totalmente desértico, “a imensidão do cerrado é tão profunda e oceânica a ponto de promover uma viagem interna, necessária ao artista”. Ela lembra que alguns autores pesquisados, como a sérvia Marina Abramovic, dizem que todo artista deve fazer uma viagem ao deserto para entrar em contato consigo mesmo. “Foi isso que aconteceu comigo”, revela.
A paisagem se modificara, porém, na terceira viagem, quando Silvia chegou para fotografar os campos de capim dourado entre a primeira e a segunda chuva e encontrou uma paisagem escura, bem diferente da que a havia encantado. Diante disso, decidiu mudar o foco para as queimadas, pois entre julho e outubro de 2010 o cerrado jalapoeiro ardeu em fogo. “Parti do encantamento com a paisagem, pela superfície, mas a partir do momento que aprofundei, encontrei muita tristeza nos campos queimados e fiquei imaginando que 99% das queimadas são provocadas pela mão do homem”. Nesse momento do trabalho, diz ter se lembrado do escritor Hermann Hesse, que disse: “A beleza é sempre assim: além do prazer, nela encontramos também a tristeza e a angústia”.
Silvia destaca momentos que se tornaram essenciais no processo da construção poética. Um deles é a subida à Serra do Espírito Santo. Para ela, uma das áreas mais exuberantes do cerrado em que a dimensão do horizonte provoca encantamento, beleza e possibilidade de uma experiência estética. Um segundo momento apontado pela artista é a caminhada na TO-255, que levou de Mateiros às Dunas, onde o corpo físico sentiu e sofreu a temperatura do cerrado. E um terceiro momento foi marcado quando ela pisou um solo queimado e pôde sentir o calor do interior da terra e observar a morte das diferentes espécies da flora. O quarto momento, segundo Silvia, foi feito de silêncio e o frescor do Fervedouro. “Quase uma compensação à angústia anterior, o contato com uma nascente de água, metaforicamente um oásis, presente na imensidão do cerrado. Foram momentos de contato com a essência poética. O trabalho ganhou fôlego, e a fruição artística aconteceu naturalmente”, relata.
A artista espera que o trabalho poético, a partir das fotografias e das reflexões pautadas em textos de vários artistas, contribua para a reflexão sobre a paisagem do Jalapão e o papel do homem na natureza. Ela disse que começa por um longo percurso, guiada pela fotografia de Robert Frank, que acompanhou imaginariamente parte das viagens realizadas ao Jalapão, segundo Silvia, especialmente quando a estrada se definiu como direção para os vários pensamentos e dúvidas que foram levantados ao longo do processo da pesquisa poética. O percurso a levou a pensar sobre a necessidade da preservação da natureza.
Silvia diz ter a impressão de que existe uma aproximação da natureza enquanto matéria para ser trabalhada na arte contemporânea. O que possibilita discutir a natureza e a permanência dela, assim como a relação do homem com a natureza no campo das artes. “Na verdade, a natureza é auto-preservativa. Ela se preserva sempre. Ela só está em destruição porque o homem destrói. Acredito que colaboro no sentido de pensar a arte com esse foco do tema destruição do planeta”, reflete Silvia.
Entre outros artistas lidos por ela está Joseph Boys, que também fez um trabalho a partir dos anos 50 no qual fala sobre a necessidade de preservação da natureza. Ele diz: “O homem saudável pode combinar harmonicamente querer, sentir e pensar”. Silvia também acredita ser possível combinar essas coisas: desejo, pensamento, sentimento e ação.
Entre as muitas linhas de Lévi-Strauss que fizeram Silvia refletir sobre seu trabalho, ela destaca a seguinte: “O homem não é só bom para comer. O homem é bom para pensar”. Ícones da literatura brasileira também contribuíram para as reflexões de Silvia, entre eles Clarice Lispector e Guimarães Rosa, com seu Grande Sertão: Veredas, que, quando fez incursões pelo sertão brasileiro, aborda um pedaço do cerrado jalapoeiro que tanto a encantou. Mas como a beleza é ao mesmo tempo encantamento, tristeza e angústia, a missão da antropóloga não poderia abandonar a pesquisa e deixar de chamar atenção para o fato de que o Jalapão é uma parte do cerrado brasileiro que está em constante transformação, nem sempre positiva. Ao contrário disso, ela acredita que a destruição do lugar, por meio dos inúmeros incêndios, das monoculturas, das explorações desmesuradas, aumenta e revela pessoas, em certa medida, despreocupadas com a permanência do lugar. “O homem leva a vida de uma forma pouco responsável e ética e torna-se testemunha da sua própria ação. O imediatismo e o desejo de progresso a qualquer custo tornarão a Terra um espaço pouco habitável e as relações humanas precárias e desgastadas, e o Jalapão parece ser um exemplo vivo”, enfatiza.

Tese: “Estrada, Paisagem e Capim - Fotografias e Relatos no Jalapão”
Autor: Silvia Helena Cardoso
Orientação: Luise Weiss
Unidade: Instituto de Artes (IA)