Manuscritos do Mar Morto
Uma das mais importantes descobertas da arqueologia ocorreu por acaso graças a um garoto beduíno que foi atrás de uma cabra desgarrada do rebanho. Isso aconteceu em 1947 num local onde teria existido uma tal de Cidade do Sal, segundo a Bíblia. Até então, após cinco décadas de explorações, os arqueólogos não tinham encontrado nada naquela região, a não ser evidências de que ali havia sido um forte do Império Romano. Mas aquele pedaço da antiga Palestina, próximo ao Mar Morto e atualmente localizado no Estado de Israel, escondia um tesouro arqueológico que ninguém imaginava.
© iStockphoto.com /Gosiek-B Região de Qumran, no deserto da Judéia, onde foram encontrados os Manuscritos do Mar Morto |
Em onze das duas centenas de cavernas da região foram encontrados cerca de 15 mil fragmentos de aproximadamente 900 manuscritos, a maior parte deles hebreus. Entre eles havia textos bíblicos, como os livros do Antigo Testamento, narrativas até então desconhecidas sobre Noé e Abraão e relatos sobre a história e a cultura da Palestina no período que vai do século 3 antes de Cristo ao século 1 depois de Cristo. Os Manuscritos do Mar Morto, como foram chamados, trouxeram importantes informações sobre oJudaísmo, os primeiros anos do Cristianismo e a relação entre essas duas religiões.
Para se ter uma ideia da importância da descoberta dos pergaminhos, até o momento em que ela ocorreu, os mais antigos exemplares do Antigo Testamento eram da Idade Média. A invasão de Jerusalém pelo exército romano e a destruição do segundo Templo no ano de 70 depois de Cristo não poupou nenhum documento sobre o Judaísmo. Em relação ao Novo Testamento, a versão mais antiga que se conhecia era um trecho do Evangelho de São João, escrito em grego no ano de 125 depois de Cristo. Entre os pergaminhos descobertos na região do Mar Morto havia um fragmento do Antigo Testamento, mais especificamente do Livro de Samuel, cuja datação feita pelos cientistas indicou que ele foi escrito no ano de 225 antes de Cristo - portanto, treze séculos antes da mais antiga versão do Antigo Testamento então conhecida. Além disso, entre o material encontrado nos pergaminhos, havia textos contemporâneos à época em que Jesus Cristo teria vivido.
A descoberta dos pergaminhos do Mar Morto, como não poderia deixar de ser, alimentou a imaginação de várias pessoas sobre eventuais segredos religiosos que eles desvendariam. Um dos motivos para isso é que boa parte dos manuscritos trazem revelações sobre os essênios, uma misteriosa seita judaica sobre a qual se sabia muito pouco até a descoberta dos pergaminhos e que pode ter exercido grande influência sobre o Cristianismo. Essa e outras revelações transformaram os Manuscritos do Mar Morto em um dos mais cobiçados tesouros arqueológicos dos tempos modernos. Na próxima página, descubra como essas relíquias foram encontradas.
Os essênios eram membros de uma seita que seguia as leis de Moisés, como o sabá e o ritual da purificação, mas sua doutrina tinha muitas semelhanças com o que viria a ser o Cristianismo. Estima-se que a ordem religiosa dos essênios reuniu cerca de quatro mil membros enquanto existiu, provavelmente entre o século 2 antes de Cristo e o século 1 depois de Cristo. A ordem não admitia mulheres e vivia sob um regime monástico. Seus integrantes trajavam hábitos brancos, conheciam astrologia, estudavam os efeitos de ervas medicinais e eram celibatários. Até a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto não se tinha certeza de sua existência, afinal eles não eram mencionados nem no Antigo nem no Novo Testamento. Mas com os pergaminhos encontrados nas cavernas próximas às ruínas de Qumran foi possível descobrir que os essênios não só existiram de fato, como também formaram uma comunidade naquela região. Eles acreditavam na imortalidade, na punição divina para quem pecasse e na vinda de um messias, negavam a ressurreição do corpo, não eram adeptos da veneração em templos e não participavam da vida pública. Os essênios surgiram provavelmente como uma seita para lutar contra o domínio grego de Jerusalém ocorrido no século 2 antes de Cristo e eles se autodenominavam como Filhos da Luz, Guardiões do Testamento e Filhos de Sadoc (sacerdote do primeiro Templo de Jerusalém). Nos tempos da dominação da Palestina pelo Império Romano, tudo indica que os essênios participaram das lutas contra os romanos. Fanáticos religiosos, eles eram radicais e, segundo o que revelaram os Manuscritos do Mar Morto, pregavam coisas muito similares ao que o Cristianismo prega. No entanto, ainda restam muitos mistérios a respeito dos essênios inclusive sobre o real nome da seita, já que "essênio" foi uma denominação dada a eles por Plínio, o Velho, historiador e oficial do Império Romano. Nos Manuscritos esse termo não aparece e em alguns dos vasos onde foram encontrados os pergaminhos aparece a palavra hebraica "yahad", que ao que tudo indica era como a comunidade dos "essênios" se auto-intitulava. |
A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto
Juma Muhammad Khalil era um garoto beduíno, integrante da tribo Ta'amireh, que num dia de abril de 1947, quando foi recolher seu rebanho de cabras, notou que um animal tinha escapado. Ele teria então saído em busca do animal e nos penhascos ao norte de Qumran, uma região a cerca de um quilômetro do Mar Morto, ele imaginou que a cabra teria se escondido numa das fendas do desfiladeiro. Ele aproximou-se e jogou uma pedra dentro da fenda, mas em vez de ver o animal sair ele ouviu o barulho de um jarro se quebrando. Muhammad pensou ter encontrado um tesouro e voltou para o acampamento, pois já estava escurecendo, com planos de voltar no dia seguinte assim que amanhecesse.
© iStockphoto.com /Richo-Fan Caverna 4, onde foram encontrados alguns dos Manuscritos do Mar Morto |
Ao chegar ao acampamento, Khalil contou aos seus primos o que tinha acontecido. Um deles, conhecido como Muhammad edh-Dhib (Muhammad, o Lobo) acordou antes de todos e foi para o penhasco. Ao entrar na fenda, que na realidade era uma gruta (umas das duas centenas que existiam na região e seriam investigadas pelos arqueólogos nos anos seguintes), ele encontrou grandes jarros de terracota, só que dentro deles em vez de metais preciosos havia sete rolos grandes de manuscritos envolvidos em tecido. Mais tarde, os beduínos, sem a mínima noção do que tinham encontrado e frustrados por não ter sido um tesouro, carregaram os pergaminhos e tentaram vendê-los em Belém. Após muitas tentativas infrutíferas e meses depois, eles finalmente arranjaram dois compradores em Jerusalém: Athanasius Samuel, bispo do Monastério Ortodoxo Sírio de São Marcos, e Eleazar Sukenik, pesquisador da Universidade Hebraica. Os dois teriam desembolsado 25 libras pelas relíquias.
Logo após os manuscritos terem sido acidentalmente descobertos pelos beduínos e chegarem até as mãos de especialistas que conseguiram verificar sua autenticidade, eclodiu a guerra entre Israel e os países árabes. O conflito árabe-israelense foi de maio de 1948 a julho de 1949 e foi provocado pela reação dos árabes à declaração de independência do Estado de Israel, baseada no Plano de Partição da ONU para a Palestina, que havia sido rejeitado pelos países árabes. Durante esse período foi impossível retomar as investigações arqueológicas na região. Mas com o armísticio supervisionado pela ONU, o capitão belga Phillipe Lippens localizou a gruta onde os beduínos encontraram os pergaminhos e uma equipe formada por arqueólogos do Departamento de Antiguidades da Jordânia, da Escola Bíblica e do Museu Arqueológico da Palestina iniciou as escavações.
Após o início da escavação na primeira gruta, grupos de beduínos voltaram a encontrar outras cavernas com pergaminhos na mesma região, entre fevereiro e setembro de 1952. Das cerca de 200 grutas investigadas nos penhascos próximos ao Mar Morto em onze delas foram encontrados cerca de 15 mil fragmentos de textos remanescentes de 900 pergaminhos escritos entre os séculos 3 antes de Cristo e o 1 depois de Cristo. Os mais bem preservados são justamente os encontrados na primeira caverna pelos garotos beduínos. Neles está na íntegra o Livro de Isaías, parte importante do Antigo Testamento, além de um Código da Comunidade, espécie de manual de disciplina comunitário, e um manuscrito denominado "A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos da Trevas".
A região onde estão os sítios arqueológicos nos quais foram encontrados os Manuscritos do Mar Morto encontra-se atualmente no Estado de Israel, por conta da ocupação israelense do território em 1967 ao final da Guerra dos Seis Dias. As onze grutas estão espalhadas numa área que vai da Cisjordânia até o deserto da Judéia. Atualmente, os manuscritos originais estão guardados em várias instituições. Os sete grandes pergaminhos da primeira gruta encontram-se sob os cuidados do Santuário do Livro, do Museu de Israel em Jerusalém. Outros fragmentos e documentos estão no Museu do Departamento de Antiguidades, em Amã, na Jordânia, no Museu Rockfeller, em Jerusalém Oriental, e na Biblioteca Nacional da França, em Paris.
Na próxima página, descubra o que revelaram os textos contidos nos Manuscritos do Mar Morto.
As evidências arqueológicas encontradas nas grutas indicam que alguns manuscritos estavam organizados como que se pertencessem a alguma biblioteca comunitária, enquanto outros pareciam ter sido depositado às pressas, como que escondidos para não serem destruídos provavelmente de uma ataque dos romanos que iam em direção a Jerusalém. O fato de objetos e utensílios cotidianos terem sido encontrados junto com alguns manuscritos indicou que a região foi durante algum tempo ocupada por algum povo ou seita. O mais provável é que aquele pedaço entre Qumran e o Mar Morto tenha sido de fato o lar dos essênios e que os manuscritos tenham sido produzidos por eles. Mas há estudiosos que defendem a tese de que alguns pergaminhos eram de fora da comunidade essênia e que talvez pertencessem à biblioteca do Templo de Jerusalém. Eles teriam sido mandados para as grutas de Qumram para serem escondidos do Império Romano. Os textos foram escritos em hebraico, aramaico e grego. |