Longe e perto do modo xavante de viver
DA ENSP/RADIS (COMUNICAÇAO EM SAÚDE)
Aparecimento de doenças crônicas preocupa índios, que, com pesquisadores da Fiocruz, investigam seus hábitos e perfil nutricional
Adriano De Lavor
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Os índios xavante estão preocupados com sua saúde. Especialmente, com o aumento de casos de obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis, como anemia, diabetes e hipertensão arterial, entre os habitantes das aldeias.
Com os pesquisadores Carlos Coimbra e Ricardo Ventura, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), os líderes xavante vêm realizando, na Terra Indígena de Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, projetos de investigação sobre a relação entre esse quadro de doenças crônicas e seus hábitos alimentares. Os estudos apontam para um cenário de transição nutricional e epidemiológica.
O cardápio das aldeias mudou. Itens como arroz, macarrão, biscoitos e outros alimentos industrializados, de alto teor calórico, que não faziam parte da dieta tradicional, passaram a ser incluídos na cozinha, que agora também utiliza grandes quantidades de sal, óleo e açúcar. Essas constatações confirmam o que concluiu o 1º Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (Radis 97), o maior estudo do gênero já realizado no país.
Parte da mudança nos hábitos alimentares xavante deve-se à introdução de novas fontes de renda nas aldeias, que estimulam o consumo, e também à redução no espaço de coleta de alimentos e caça, contendo um povo tradicionalmente nômade, que precisa disputar terra com os projetos de agronegócio, em franca expansão no Mato Grosso. Ao lado da dieta diferenciada, o sedentarismo é uma das principais causas da transição epidemiológica.
Radis acompanhou, em julho, parte do trabalho de campo realizado em Pimentel Barbosa, conversou com líderes xavante e com pesquisadores, conheceu o cotidiano das aldeias e registrou o ritual Wai’a. Nos dias que passou nas aldeias, a equipe de reportagem constatou como a saúde, para os povos indígenas brasileiros, está diretamente ligada ao direito de propriedade à terra, ao respeito às tradições e ao acesso à alimentação de qualidade.
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São dois os projetos em curso nas aldeias xavante de Pimentel Barbosa e Etenhiritipa, que tratam da relação entre alimentação, estratificação socioeconômica e emergência de doenças crônicas não transmissíveis. O primeiro deles — inédito no país — é um estudo longitudinal de monitoramento do estado nutricional e da incidência de hipertensão arterial e diabetes mellitus em adolescentes e adultos nas duas aldeias, ao longo de 24 meses.
A pesquisa enfatiza a relação entre obesidade e doenças associadas e o processo de diferenciação socioeconômica em curso, que também é tema do outro projeto — uma investigação epidemiológica e antropológica, que trata especificamente da influência dessa estratificação no processo de transição em saúde dos povos indígenas.
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Carlos Coimbra (ver entrevista na página. 13) e Ricardo Ventura já trabalhavam com as duas aldeias desde 1990, mas desenvolviam apenas estudos de prevalência, que caracterizavam situações epidemiológicas específicas — como a ocorrência de algumas doenças infecciosas — restritas ao período em que se realizava a coleta de dados, sem acompanhamento prospectivo. A inexistência de dados institucionais e a falta de continuidade dos estudos não permitiam que se delineasse um panorama geral sobre a saúde da etnia. “Realmente não sabíamos do que adoeciam e do que morriam os xavante”, explica Coimbra. Na última década, os pesquisadores e os próprios índios começaram a detectar problemas específicos, como diabetes e hipertensão, bem como a mudança nos padrões alimentares.
A partir de 2006, os pesquisadores deram início a uma nova abordagem. O foco são as questões emergentes, analisadas por investigação regular, que caracteriza os estudos longitudinais. “Estamos construindo um banco de dados de profundidade histórica prospectiva”, destaca Coimbra. Nos dois projetos mais recentes, a equipe de pesquisadores mede a pressão arterial e a porcentagem de gordura no corpo, estuda a relação entre peso, altura, idade e sexo, avalia o nível de atividade física e colhe sangue para detectar anemia e diabetes entre os 700 moradores das duas aldeias.
Pós-graduandos em campo
Rodolfo, nutricionista e mestrando da Ensp, faz medições de altura |
Um time de pós-graduandos integra a equipe de trabalho, que, diariamente, às seis da manhã, já está “em campo”. À frente da coleta de dados sobre atividade física, o nutricionista Rodolfo Lucena, mestrando emepidemiologia em saúde pública na Ensp/Fiocruz, adianta que é possível perceber uma tendência de ganho de peso entre os entrevistados. Também nutricionista, Aline Alves Ferreira, doutoranda no mesmo programa, investiga o processo de amamentação. “Os padrões clássicos de alimentação não funcionam na realidade indígena”, explica. Na cultura xavante, é comum que o primeiro leite da mãe (colostro) não seja dado à criança, e que a primeira mamada não seja oferecida pela mãe, mas por uma tia, avó ou madrinha.
O calor do Centro-Oeste exige que o enfermeiro Maurício Oliveira, também estudante do mestrado da Ensp, use a criatividade para continuar a coleta de sangue em mais uma residência da aldeia Etenhiritipa: o equipamento que faz a medição, de fabricação sueca, para de funcionar com as altas temperaturas. O jeito é enrolá-lo em uma camiseta molhada ou aproximá-lo da saída de ar condicionado do carro da equipe. O calor e a distância de casa não desanimam a equipe, como demonstra Vinícius Gomes, estudante de geografia na UFPE. Ele se integrou à equipe durante a produção do 1° Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas e já vislumbra um futuro na área: “Quero trabalhar com isso”.
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Exames e medições são repetidos regularmente em junho (pico da estação seca) e janeiro (alta da estação chuvosa), respeitando a variedade de alimentos disponíveis em diferentes períodos do ano. Os resultados dos exames são ponto de partida para discutir com os índios temas novos para eles, como obesidade e sedentarismo — e ajudá-los a compreender que está em curso outra lógica de enfrentamento das doenças. Se antes lidavam com doenças infecciosas, agora, enfrentam agravos que envolvem comportamentos. “Que remédio existe para tratar um comportamento?”, indaga Coimbra.
Mudança na alimentação
Os alimentos industrializados começaram a ser consumidos na aldeia com a distribuição de cestas básicas e a circulação de dinheiro, decorrente de salários e aposentadorias. Jamiro Tsuwepte, agente indígena de saúde, relaciona os novos problemas de saúde com a mudança na dieta de seus parentes, que incluíram na alimentação produtos como bolachas, café, açúcar e refrigerantes.
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À sombra das mangueiras da aldeia Pimentel Barbosa, o cacique Tsuptó Buprewên Wa’iri Xavante conta que, antigamente, quando as mães se alimentavam com a comida tradicional, ninguém tinha que ir ao posto tomar soro ou medicamento e não se viam casos de pressão alta e diabetes. “Não tínhamos conhecimento dessas doenças”, diz o cacique. O desafio, considera, é convencer a nova geração a retomar os antigos hábitos alimentares.
O vice-cacique Roberto concorda e defende o modo de vida xavante. Mesmo tendo vivido na cidade, sempre preferiu o ritmo da aldeia, com menos barulho, menos poluição e mais saúde. “Eu caço como meu pai caçava. Índio precisa andar no mato para não perder sua cultura”. Ele destaca a importância da tradição nômade dos xavante, ameaçada pela proximidade dos fazendeiros e a limitação dos territórios.
Terra é saúde
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Um dos mais antigos líderes de Pimentel Barbosa, o ancião Sereburã reforça que a saúde do seu povo está ligada ao direito de ampliação de suas terras, já que sempre foram nômades e buscaram na natureza as energias para se manterem fortes. “Índio que fica muito tempo na aldeia tem doença”, afirma, lembrando que alimentar-se com caça e batatas de lugares diferentes garante boa saúde. Os pesquisadores confirmam que a diminuição no padrão de atividade física é um dos fatores agravantes dos problemas de saúde detectados.
Na aldeia de Etenhiritipa, o cacique Paulo Supretaprã confirma o diagnóstico. “Hoje, os jovens não se exercitam como os velhos se exercitavam”. Ele lembra que, na sua infância, não se comia arroz, macarrão e bolachas. Até o sal era diferente, escuro, feito com o broto de um coquinho torrado, conta o cacique, que considera difícil convencer os mais jovens a abandonarem as novidades.
Assistência deficiente
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Supretaprã chama a atenção para outras questões que interferem na saúde das duas aldeias. Ele critica a atuação da Funasa e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), em Barra do Garça (MT), que só têm técnicos em sua equipe, “incompetentes para a saúde indígena”. O cacique reclama que até hoje nenhum convênio estabelecido pelas instituições surtiu qualquer efeito. E cobra a concretização de promessas, como obras de saneamento e poços artesianos. “Cadê o dinheiro para a construção do posto de saúde e do dormitório para a equipe multidisciplinar?”, quer saber.
Caime Waiassé, vice-cacique de Etenhiritipa, levanta outro ponto: a falta de capacitação dos profissionais enviados às terras indígenas, sempre iniciantes, e “que só vêm para dar remédio”. Ele critica o uso excessivo de medicamentos e cobra mais investimento na infraestrutura de saúde. Tsuptó reforça a crítica, lembrando que no papel os projetos são bons, mas nunca são executados. Ao contrário do que “está no papel”, não há avião nem carro para deslocamento de doentes no pólo-base de Água Boa (MT). Nem mesmo combustível foi disponibilizado para resgates. “A gente faz tudo que é obrigação da Funasa”.
A situação se confirma em uma visita ao posto de saúde, que segundo o cacique de Pimentel Barbosa “não tem nada da Funasa, a não ser o aparelho de inalação”. O dentista Rodrigo Duarte, há três meses no posto, tem que atender 24 aldeias xavante com apenas um carro, compartilhado com uma nutricionista e a auxiliar de enfermagem. “É impossível dar conta”, resume. Ele informa que não há cadeira apropriada para atendimento e que sua atuação fica restrita a profilaxia, noções de higiene bucal, restaurações provisórias e extrações.
Preconceito
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O cacique de Pimentel Barbosa também denuncia o preconceito de que os indígenas são vítimas quando recorrem ao atendimento no hospital público de Água Boa (MT). Tsuptó explica que o hospital tem uma ala separada para atender pacientes indígenas — “um lugar sujo, inadequado, sem lençol” — e que já testemunhou situações em que os índios ficaram à espera de atendimento deitados no chão.
FONTE- RADIS COMUNICAÇÃO EM SAÚDE-
http://www4.ensp.fiocruz.br/radis/98/capa.html (Outubro de 2010)