sexta-feira, 14 de maio de 2010

MITO E CULTURA NO LABIRINTO DAS ÁGUAS

A presença excessiva de rios e igarapés instiga o imaginário popular em Santa Bárbara

por Jéssica Souza
foto Tatiane Vidal

Era uma... foi uma vez... que eu ia pra beira do igarapé, eu, minha mãe e um rapaz. Nós fomos pescar siri. Quando a gente chegou na beira desse igarapé, era umas cinco horas da tarde, a gente já tinha meia saca de siri, de tanto que a gente gostava de pescar. E a minha mãe disse: "Não, umbora mais adiante um pouco". Choveu, deu aquela chuva. Então, a maré tava muito alta. E aí, apareceu... vinha assim, cortando água... pra mim era dois 'tubarão'. E eu disse: "Mãe, olhe, dê uma olhada, vem dois tubarão ali". Aí ela me disse: "Meu Deus do céu, é a Cobra Grande". Eu achava que era dois tubarão, era a presa da cobra. Quando ela levantou a cabeça, nós vimos que era realmente a Cobra Grande, a coisa mais horrorosa do mundo, eu nunca tinha visto.















Essa história foi contada por uma moradora do município de Santa Bárbara, na Região Metropolitana de Belém, um pedacinho da Amazônia no coração da cidade, onde o imaginário coletivo ainda é ricamente povoado por mitos e encantamentos. O narrar é rico, na verdade, em todo espaço onde existe o elemento humano. Onde há vida humana, há o contar, que cria e recria histórias, na forma oral, escrita e/ou visual. A oralidade, porém, é uma das formas mais antigas de narrar e, mesmo diante das novas tecnologias, se mantém forte na tradição cultural de muitos grupos sociais.



Investigar a influência das narrativas orais no cotidiano dos moradores de Santa Bárbara, observando o caráter ordenador, de controle social, presente nessas narrativas, foi o objetivo da Dissertação "Narrativa Oral em Santa Bárbara do Pará: mito e cultura no labirinto das águas" de Tatiane Vidal Mesquita, defendida recentemente na Universidade Federal do Pará, sob orientação do professor José Guilherme Fernandes. Uma das constatações da pesquisa é que o espaço amazônico é determinante na configuração da sociedade local, que apresenta padrões, tabus e regras de conduta, os quais passam de geração a geração, por meio da oralidade.



Histórias orientam contato com a natureza



No caso da história sobre a Cobra Grande, por exemplo, narrada por uma comerciante do município, percebe-se que, apesar de já possuírem o suficiente para alimentar a família ("a gente já tinha meia saca de siri"), o gosto pela pesca fez com que eles fossem mais adiante, buscando o prazer da diversão. Explica, então, a pesquisadora: "na cultura local, é comum as pessoas falarem de seres encantados que protegem seus espaços. No caso dos rios e igarapés, temos, principalmente, a Mãe-d'Água, o Boto e a Cobra Grande. Por isso surgem, no imaginário coletivo, os lugares proibidos para a pesca. Se os pescadores buscam o suficiente para garantir a subsistência, o equilíbrio se mantém, mas ir além do permitido resulta em punição".



Os mitos e as histórias transmitidas oralmente, conforme avaliou Tatiane Vidal, retratam diversas temas, como solidão, identidade, vivência familiar, experiências compartilhadas com o grupo social (trabalho, lazer, religião), e, também, os problemas sociais. "As narrativas são definidoras de ações, que orientam o homem no seu contato com a Natureza e com a sua comunidade. Cada vez que alguém pede permissão aos seres mitológicos para entrar na água ou na mata, move-se a cultura, reforçam-se as tradições", continua a pesquisadora. Assim, acontece em Santa Bárbara, onde a presença excessiva de rios e igarapés forma caminhos de água, que se cruzam em vários lugares desenhando um verdadeiro labirinto, fato que instiga, ainda mais, o imaginário popular.



"A imagem da Cobra Grande, na narrativa em questão, mostra uma cobra com dentes imensos, surgindo na água como 'dois tubarões'. Na reinvenção da memória, a Cobra é 'a coisa mais horrorosa do mundo', que demarca seu território e expulsa aqueles que desafiam seu poder", diz a professora. Dessa forma, as vozes inseridas no contexto de Santa Bárbara são, por metonímia, as vozes de cada região amazônica. O trabalho busca voltar um olhar científico para o 'homem comum', a partir do entendimento de que as narrativas orais não acontecem apenas num invólucro de encantamento, mas também atreladas ao contexto existencial de cada narrador.



Mitos explicam aspectos da vida cotidiana



No cotidiano do que não se pode explicar racionalmente, a vida é explicada por meio do mito, com recorrência à memória. "A palavra ‘criação’, presente nas narrativas mitológicas, nos aproxima da arte, representa e justifica realidades, em que o aspecto simbólico, muitas vezes, prevalece", afirma a pesquisadora Tatiane Vidal. Como diria Fernando Pessoa, o "mito é o nada que é tudo". Um tudo que resume a luta da humanidade contra o esquecimento, e lutar contra o esquecimento é marcar uma identidade. Os temas que podem surgir a partir daí se referem ao aspecto popular da vida humana.



De acordo com a pesquisadora, a importância acadêmica da pesquisa reside justamente no estudo dessa Literatura Oral, enquanto arte de exprimir cultura em palavras, imagens e sons. Para basear sua pesquisa, Tatiane Vidal realizou entrevistas, in loco, com os moradores de Santa Bárbara. "O ir ao encontro do 'outro' faz com que mergulhemos no entendimento antropológico da própria vida humana, nesses arredores", recorda.



A relação dialógica entre pesquisador e entrevistado, ressalta Tatiane Vidal, fez do trabalho um encontro de vozes, em que o entrevistado deixa de ser informante e passa a ser narrador. Outro ponto importante é o sentido de devolução social, ou seja, o retorno para a comunidade das informações que ela mesma prestou. "Esse retorno pode acontecer sob a forma de exposição oral e/ou doação dos documentos confeccionados para escolas e bibliotecas locais. Logo, temos um compromisso com o contexto social". Leia, na edição On Line, algumas narrativas registradas pela pesquisadora.



Onde o urbano e o rural se confundem



A narrativa oral gera padrões sociais, que operam, na sociedade, formas de ocupar e utilizar o espaço, e o espaço amazônico é formado basicamente de floresta e água, sendo que a parte floresta só é abundante, em diversidade de fauna e flora, devido às águas que compõem este exuberante cenário: águas dos rios, dos furos, dos igarapés, das chuvas, da lama dos mangues e até do próprio ar que apresenta umidade relativa elevada, chegando a 85% em Santa Bárbara.



O município de Santa Bárbara, criado pela Lei nº 5.693, de setembro de 1991, sancionada pelo governo de Jáder Barbalho (Publicada no Diário Oficial de 20 de dezembro de 1991, edição de número 27.122, p.7), foi desmembrado do município de Benevides. Como ocorre nas várias cidades da região amazônica, nesse município, fica difícil separar os limites do rural e do urbano. Esses dois aspectos se misturam num intercâmbio muito forte, criando mais uma nova forma de apresentação do espaço social.



Fonte: Dissertação "Narrativa Oral em Santa Bárbara do Pará: mito e cultura no labirinto das águas" - Tatiane Vidal (2009)/J BEIRA DO RIO-UFPA
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