sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Os poderes do ‘abacaxizinho’

Bromelina, enzima do abacaxi, é encontrada
também no curauá, planta amazônica

jornal da UNICAMP/ISABEL GARDENAL
Um pedacinho de abacaxi na panela, e a carne fica macia. Quem faz isso é a enzima bromelina, presente na fruta, que é levada às mesas e que muitos sequer suspeitam de sua ação. Da mesma família do abacaxi, o curauá é uma planta originária da Amazônia que acaba de ser motivo de uma ampla investigação da pesquisadora Juliana Ferrari Ferreira, que defendeu recentemente a sua tese de doutorado na Faculdade de Engenharia Química (FEQ). Em poder de algumas amostras da planta, a autora comprovou que nela também existem teores significativos da bromelina e demonstrou, por meio de técnica específica (sistema bifásico aquoso), que os seus níveis de purificação permitem provavelmente serem agregados a cremes, a loções e a géis anti-inflamatórios.
O resíduo de curauá, conta a pesquisadora, que é engenheira química, em geral é descartado por se entender que era apenas refugo. Juliana mostrou em seu estudo que a planta possui atividade enzimática, podendo ser purificada para ser comercializada pela indústria farmacêutica. “Ficou claro que estamos jogando fora algo de valor, sendo que atualmente apenas o abacaxi é visto como fonte desta enzima”, comenta.
A fibra dessa planta, relata ela, é largamente usada na indústria automobilística, após ter sido exibido o seu potencial como componente de peças de carro, e na indústria têxtil, devido à sua resistência, maciez e peso reduzido.
Uma empresa de São Bernardo do Campo processa essa fibra por conta do seu excelente comportamento mecânico. O processo envolve uma moagem, como a da cana-de-açúcar. “Da fibra do curauá, sai uma mucilagem de alto valor proteico oferecida aos animais. O resíduo líquido contém a bromelina”, conforme Juliana.
Já se sabe na literatura que toda planta da família das bromeliáceas (no caso o abacaxi é o mais conhecido) tem a enzima estudada. Assim, a engenheira química resolveu explorá-la para ver se continha quantidades suficientes para buscar novas aplicações. O trabalho foi orientado pelo docente da FEQ Elias Basile Tambourgi, responsável pela linha de pesquisa de purificação de biomoléculas desta faculdade.
Juliana extraiu e purificou a enzima em sistema bifásico aquoso. Conseguiu, no estudo, fatores de purificação elevados. Ainda que esse estudo seja preliminar, ele sinalizou um potencial para diferentes aplicações. O trabalho foi feito com o curauá branco e com o roxo – as duas variedades da planta – no Laboratório de Processo de Separação II.
Outra característica observada pela autora do trabalho foi que esse resíduo tem um alto teor de açúcar, que poderá estar presente na produção do álcool, por exemplo, do mesmo jeito que se utiliza cana-de-açúcar. “Só que isso depende de estudos mais aprofundados, fugindo ao objetivo do nosso estudo”, expõe ela.
A despeito de se notar uma gama de proteínas nesse resíduo, o intuito de Juliana foi obtê-lo (por ter uma atividade anti-inflamatória interessante), verificar o quanto de enzima possuía e se tinha atividade enzimática. A pesquisadora chegou à pré-purificação da planta, estágio que não contemplaria os anti-inflamatórios orais (os comprimidos), os quais exigem um maior grau de pureza. “Provavelmente teria que passar ainda por uma cromatografia. Fomos apenas até a etapa da eletroforese, pelo fato de não requerer um nível de pureza tão elevado para aplicações industriais. Conseguimos quantificar o quanto a proteína estava pura.”
Achados
Como a fibra de vidro não é renovável, afirma a doutoranda, ela está sendo substituída hoje pela fibra de curauá, presente nos painéis dos carros para resistir mecanicamente a impactos e a colisões. A vantagem desta fibra é que ela é ecologicamente correta e sua produção ocorre o ano todo.
Foi deste modo que a fibra começou a ser utilizada anteriormente, para confeccionar redes e tapetes. Mais tarde, alguém viu na fibra excelentes características mecânicas para ser incorporada aos carros e como plantas ornamentais. “Há inclusive um grupo da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp que usa essa fibra em suas pesquisas, a fim de realizar testes mecânicos”, relembra Juliana.
Ela, porém, realça que ainda não estão disponíveis pesquisas mundiais com essa planta, uma vez que ela é de origem brasileira. Anteriormente, no mestrado, Juliana havia trabalhado com a bromelina extraída e purificada do abacaxi. A enzima comercial, salienta, é retirada do talo e da casca do abacaxi e é vendida por empresas dos EUA, onde esta tecnologia já se tornou conhecida.
O que mudou do estudo de mestrado para o de doutorado da engenheira química, além da fonte de matéria-prima, esclarece, foi o fato de usar um resíduo, um subproduto. De acordo com ela, é certo que o abacaxi tem muita bromelina em sua composição. Só que economicamente não seria viável extraí-la da fruta.
Outra dificuldade é saber o momento de fazer a extração da bromelina do abacaxi. Isso porque, quando a fruta está nova demais, ela não tem bromelina, ou a sua quantidade é mínima. Já, quando está muito madura, a sua quantidade pode cair muito. Deste modo, é preciso obtê-la na época exata da maturação, “sendo portanto vantajoso retirar bromelina da casca e do talo”, explica. Apesar do curauá ter menores quantidades de bromelina, como ele é descartado, acaba tendo um custo-benefício maior. A planta se assemelha a um abacaxi, por isso popularmente é tratada como “abacaxizinho”.
A sua ideia, comenta Juliana, foi dar visibilidade ao curauá. “O setor industrial precisa saber que está jogando fora um resíduo rico em propriedades e em aplicações”, adverte. Uma outra pós-graduanda da mesma linha de pesquisa fez um estudo de custo do produto, que se mostrou viável. Com alguns quilos de resíduos produz-se a enzima, a qual é liofilizada (embora sendo uma substância líquida) e vendida por um preço elevado, menciona.
Rumos
A pesquisadora pretende continuar esse estudo no pós-doutorado para ver o seu trabalho mais robusto, assistindo à produção dessa enzima industrialmente. Ocorre que faltam mais testes dessa enzima em medicamentos e talvez passar por um processo de purificação com nível de pureza um pouco mais elevado. É preciso passar por uma cromatografia de gel filtração, troca iônica para usar em medicamentos por via oral.
Fato é que, mesmo com os bons resultados apresentados na pesquisa, a única empresa que comercializa o curauá pretende prosseguir com o mesmo foco de uso da fibra, que é o que eles fazem no momento. Entretanto, para Juliana, esse “filão” poderá ser descortinado por mais empreendedores como um novo nicho de mercado nos próximos anos. “O Brasil infelizmente importa essa enzima, ainda que detendo a matéria-prima. O país está perdendo muito deixando de produzi-la aqui”, acredita.
No início da investigação, Juliana e o seu orientador estiveram em Botucatu para fazer algumas ponderações com o professor Isaac Stringueta Machado, docente da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, que muito colaborou para esse estudo. O foco de sua pesquisa é a micropropagação da planta in vitro. Sua intenção é fazer o curauá se desenvolver fora do seu ambiente natural.
Origem do curauá
O curauá (Ananas erectifolius L. SMITH) é uma bromélia característica da Amazônia paraense, que cresce em clima úmido e muito quente, chegando à altura de 1,5 metro. Ali está mais concentrada na região de Santarém, onde existe em grande abundância e, mesmo assim, já não está conseguindo mais suprir a demanda crescente por tanta fibra. Essa planta é rara no Sul e no Sudeste.
A fibra extraída de suas folhas é muito resistente, macia, leve e reciclável, permitindo composições para diversos usos na indústria. Ela, que foi apresentada à indústria na década de 1990, é atualmente cotada como substituta da fibra de vidro em peças automobilísticas e como composto de vigas resistentes a terremotos.
A planta pré-colombiana, da família das bromeliáceas, é também utilizada na fabricação de cordas, sacos, utensílios domésticos e artesanato. É quatro vezes mais resistente que a fibra do sisal e dez vezes mais resistente que a fibra de vidro.
O seu cultivo não provoca a degradação da mata nativa, contribui para revitalizar terras desmatadas, não é exigente a fertilizantes químicos e pode ser consorciada com culturas alimentares, representando uma fonte de renda e garantindo segurança alimentar ao agricultor da região amazônica.
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■ Publicação

Tese: “Extração e caracterização da enzima bromelina presente no curauá (Ananas erectifolius L. SMITH)”

Autora: Juliana Ferrari Ferreira

Orientador: Elias Basile Tambourgi
Unidade: Faculdade de Engenharia Química (FEQ)

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