terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A DESCOSTRUÇÃO DO DESCASO



Por Jamile Chequer

Grupos impactados por toda sorte de projetos - que vão desde o plantio da cana-de-açúcar e eucalipto à construção de hidrelétricas e exploração de minério - denunciaram a violação de seus direitos e a depredação do meio ambiente nas regiões onde moram. Os relatos foram feitos durante o I Encontro Sul-americano de Populações Afetadas por Projetos Financiados pelo BNDES, de 23 a 25 de novembro.

Nas cinco regiões do país, milhares de pessoas – ribeirinhos(as), quilombolas, indígenas, pescadores(as), agricultores(as) etc – sofrem com a implantação do “desenvolvimento”. O número é imensurável, a quantidade de pessoas que configuram como impactadas diretamente pelas obras é infinitamente menor que a relatada pelos grupos que ali estiveram.

No encontro, pôde-se perceber que a extensão dos danos desses projetos que envolvem grandes empresas vão além, e muito além, da valoração material. Vistas como “entraves para o desenvolvimento”, essas populações sofrem com barragens construídas a poucos metros de suas casas; nuvem de poeira por retirada de minério das jazidas; atropelamento em vias férreas sem sinalização ou passagem para pedestres; assoreamento, poluição e extinção de rios; manguezais destruídos; envenenamento e extinção de peixes, barulho constante; trânsito crescente com a presença maciça de grandes caminhões. “Nós, ribeirinhos, não temos mais o direito de pescar. Dizem que a causa é a natureza. Impacto da natureza que nada, é a desgraça da hidrelétrica”, denuncia Cleide Passos, coordenadora do Movimento de Atingidos por Barragem.


A “expulsão” de suas casas e comunidades onde moram desde que nasceram se dá de maneira violenta e com poucas palavras. A retirada dessas pessoas de suas terras mina suas identidades e laços, seja ela com ou sem negociação. A dúvida em relação ao seu próprio destino, fruto da falta de informação e diálogo torna-se um martírio diário. A maior parte dos relatos dá cont que as populações locais são as últimas a saber sobre o empreendimento e suas consequências. Em vez do prometido progresso, portanto, o que essas obras têm trazido para essas populações é exploração da mão-de-obra e angústia.

“Os estudos de impacto ambiental para aprovação dos projetos são mal-elaborados, os dados são mal-analisados. As informações sobre os impactos sociais e ambientais são recorrentemente omitidas da sociedade. É dito que esses empreendimentos, em geral, são feitos em 'vazios demográficos', que vão levar desenvolvimento para essas regiões, mas isso está longe da verdade. As empresas que não conseguem instalar seus empreendimentos em países com padrões ambientais mais rígidos vêm fazer isso na América Latina", aponta Guilherme Zagalo, da Campanha Justiça nos Trilhos.

E outros países da América Latina seguem o mesmo caminho aberto por empresas brasileiras, como afirmam representantes de comunidades do Equador, Colômbia e Bolívia. "Na Bolívia, os financiamentos do BNDES beneficiam grandes empresas privadas ligadas ao poderio econômico nacional. Os recursos do BNDES não deveriam servir para atentar contra a vida no planeta, não deveriam colocar em risco populações de milhares de países. Por responsabilidade do BNDES e do Estado brasileiro, os direitos humanos dos povos indígenas e dos pequenos agricultores estão em risco", revela Manuel Lima Bismark, da Fobomade.

O impacto indireto nas populações não é contabilizado. O engano é que, provavelmente, se nenhuma dessas ações está aos olhos da maior parte da população brasileira, pouco impacto teriam sobre suas vidas. Normalmente, o descaso torna-se motor daquilo que não nos é sentido, tornando-se assim, pouco palpável. Por isso, é preciso lembrar que também um dos resultados dessa lógica é que a poluição produzida, a quantidade de CO2 emitida, impacta outros lugares do planeta. Às vésperas do encontro em Copenhague e da eminência comprovada de uma mudança climática radical, essa é questão a ser refletida por todos, porque sofrida por todos.



O maquinário, causa desses fatos sobre os quais, se nada for feito, em breve vão se tornar apenas parte da história, é muito mais complexo do que o próprio BNDES pode dar conta. Trata-se de uma megaoperação global para esticar o capitalismo ao seu máximo. Porém, O banco tem orçamento quatro vezes maior que o do Banco Mundial e parte de seus recursos vem do Fundo de Amparo ao Trabalhador, ainda que isso soe irônico. Para se ter uma ideia, segundo a jornalista do Repórter Brasil, Verena Glass, o banco financia mais de 200 usinas de cana, principalmente no Centro-Sul do país, e sua carteira de recursos para o setor sucroalcoleiro ultrapassa R$ 20 milhões. “A expansão do plantio da cana é uma ameaça à agricultura familiar e à soberania alimentar e o BNDES é hoje o motor econômico dessa atividade", diz.


A  Plataforma BNDES defende a responsabilização do banco por aquilo que resulta de seus empréstimos. É um primeiro passo para o desmonte de uma lógica opressiva e agressiva aos direitos da maioria. “A Plataforma levanta a tese da corresponsabilidade do banco. Responsável não é apenas aquele que executa o projeto, mas também aquele que concede empréstimos, aliás, a juros bem baixos”, aponta Cândido Grzybowski, diretor do Ibase.


Os grupos que estiveram no encontro são contemporâneos, mas vislumbram um mundo à frente do que vivemos hoje. Não desejam o fim do BNDES ou lutam contra o desenvolvimento. Defendem um banco transparente e que financie o desenvolvimento baseado em critérios verdadeiramente sociais e ambientais.

No fim do evento, representantes das organizações presentes foram em marcha ao prédio do BNDES para protesto e encontro com o presidente do banco, Luciano Coutinho. O documento com propostas e reivindicações para a democratização da instituição, porém, não foi recebido como o esperado. Coutinho acabou não se comprometendo com as responsabilidades atribuídas à instituição. Uma pena. Isso significa que, de qualquer forma, as obras estão em andamento, mas também as lutas sociais travadas por esses grupos.